Um espaço para partilhar pensamentos, opiniões, gostos e desgostos nas palavras de uma moçambicana descobrindo-se e descobrindo os dias que se sucedem...

segunda-feira, 21 de junho de 2010







Que prazer olhar para as malas fitando como para nada!
Dormita, alma, dormita!
Aproveita, dormita!
(…)
É a véspera de não partir nunca!
Álvaro de Campos, in "Poemas"


Lembro-me de uma vez em miúda deixar a minha tia querida muito desiludida ao errar a palavra "Portugal" num ditado - escrevera "Portugual". Há muito que aprendera a soletrar correctamente o nome do meu país: M-o-ç-a-m-b-i-q-u-e.
Desde sempre que vivo dividida entre dois mundos.
Costumava ir todos os anos a Portugal, nas férias. Já conhecia o país relativamente bem. Até vivi lá, fui à escola lá durante parte da minha infância. Mas sempre houve algo de diferente entre mim e quase todos os meus colegas, as minhas vizinhas: eu vinha de outro país.
Alguns anos mais tarde regressei àquele país, desta vez para me iniciar  na faculdade. Durante os cinco anos em que vivi em Lisboa vivenciei o mesmo fenómeno por que passam tantos outros que abandonam o seu país de origem: o nacionalismo exarcebou-se. Em terras de outro parece ainda mais importante defendermos a nossa bandeira a todo o custo; de certa forma sentimo-nos representantes de uma soberania distante.
Num de muitos devaneios melancólicos com o meu pai, manifestei-lhe o quanto gostaria de transportar algumas coisas de Portugal para Moçambique, como os concertos, bares e discotecas, transportes minimamente organizados e por aí… E ele disse-me algo que nunca mais poderia esquecer: uma vez que experimentas a vida num segundo país, nunca mais te sentes completa em lado nenhum.
Na altura pareceu-me um pouco descabido: como era, então, possível viver, sem se sentir completo?
Mas o tempo ajuda-nos a aceitar e até a compreender o que antes parecia absurdo.
De regresso a Moçambique e iniciando uma carreira profissional no jornalismo nacional deparei-me com outra dúvida. Pela primeira vez, entendi algo que me escapara durante tantos anos - para muitos eu nunca seria considerada uma “verdadeira” moçambicana no meu próprio país. Porque fui entregue num pacote diferente da maioria, com a pele mais clara.
O “descabido” deixou-me novamente um gosto amargo na boca. Absurdo.
Então de onde sou eu? Se não sou de cá nem de lá? Lá não me revejo e cá não se revêem em mim.
Também desta vez o meu instinto foi defender uma bandeira que também é minha. Lutar. Lutar. Lutar para iluminar. E durante algum tempo cansei-me e frustrei-me.
Mas parei quando percebi que há coisas que temos que aceitar mesmo como elas são. Quando finalmente compreendi que estas coisas da pátria são muito mais complicadas do que um mapa escrito a uma única cor. Compreendi que “pátria” é mesmo aquela que cada um de nós escolhe para si. E o que está entranhado em nós ninguém nos pode tirar. 

3 comentários:

  1. Arrepiada dos pés a cabeça com o que leio. Me faltam palavras para manifestar a semelhança que existe entre as almas. Lágrimas pulam dos olhos e os dedos digitam trêmulos...Não, não é exagero, foi o momento que me deparei com isso e "uma vez que experimentas a vida num segundo país, nunca mais te sentes completa em lado nenhum", nas palavras de teu pai e nas outras tuas reside a minha mais profunda identificação. Que bela escrita e que belos sentimentos!

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  2. Nice Maura!
    É um dilema de muitos de nós. E mesmo os que nunca saíram daqui não os sentem nacionais por causa da côr da pele. Tá-se mal.
    A mentalidade tem que estar mais aberta, olha os estados unidos escolheram um presidente mestiço, com um dos pais doutro continente, algo inimaginável por aqui né?
    Escreves muito bem, clareza de pensamento.
    Hei-de voltar.
    Liliana

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  3. Yana, minha querida, já te agradeci a partilha íntima, mas... "obrigada" é palavra que não se gasta nunca. Guardo as tuas palavras num lugar especial.


    Liliana, pois é... mentalidade aberta - puseste o dedo na ferida. E como não vemos que há tanta coisa boa nesta riqueza que a diversidade nos oferece de mão beijada? é isto que me enlouquece! Perdemos todos...
    Obrigada pelo encorajamento :0)

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